sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Resumindo e comentando “POLEGARZINHA” de Michel Serres

texto de Vitória Régia

O autor logo recomenda: “antes de ensinar o que quer que seja a alguém, é preciso, no mínimo, conhecer esse alguém”. Verdade, embora poucos professores se interessem pela prática desta máxima. E por esta indicação percebemos que um dos intuitos é refletir a respeito das mudanças ocorridas na educação em tão pouco tempo, num período em torno de 100 anos, na sociedade mundial, que em 1900 era predominantemente agrícola/rural e em 2011 está com a maioria da população urbana. Este aluno, este jovem que habita a cidade polui menos, tem expectativa de vida de 80 anos, obterá sua herança na velhice, conviverá com uma população global em torno de 7 bilhões de habitantes. Desfrutará de melhores avanços medicinais, seu nascimento terá sido programado, viverá com menos guerras. “Não tem o mesmo corpo nem o mesmo comportamento; adulto nenhum soube inspirar-lhe uma moral adequada”.
As gerações anteriores assistiam aulas em auditórios universitários homogêneos, agora eles convivem com pessoas de diferentes religiões, línguas, origens e costumes. No entanto ele coloca uma pergunta.
“Qual literatura, qual história eles irão compreender, felizes, sem ter convivido com a rusticidade, com os animais domésticos, com as colheitas do verão, com diversos conflitos, com cemitérios, com feridos, com famintos, com pátria, com bandeira ensangüentada, com monumentos aos mortos... e sem ter experimentado, no sofrimento, a urgência vital de uma moral?”

                   
Enquanto seus antepassados recebiam uma cultura milenar, hoje o jovem vive outra história, formatada pela mídia, onde a imagem mais representada é a de cadáveres e aos 12 anos já viu uns 20 mil assassinatos.  (Concordo, nunca imaginei ver cenas tão cruéis e sem filtro como as que vejo postadas no facebook; por exemplo, vi um feto recém abortado ainda se mexendo na mão que o havia extraído). Pelo poder de exposição de que dispõe, pelo poder de sedução e pela importância que tem, a mídia há muito tempo assumiu a função do ensino”.  Os professores se tornaram os menos ouvidos, as crianças habitam o virtual. “As consultas feitas à Wikipédia ou ao Facebook não ativam os mesmos neurônios nem as mesmas zonas corticais que o uso do livro, do quadro-negro ou do caderno. Essas crianças podem manipular várias informações ao mesmo tempo. 
                                                    o jovem consegue ver TV, usar o computador e ouvir música
É de outra forma que se escreve:
com os polegares nos smartphones.


Polegarzinhas com seus aparelhos.
Pelo celular acessam as pessoas, pelo GPS – lugares, pela internet – o saber. Este novo ser nasceu por volta de 1970, não tem mais o mesmo corpo, não habita mais o mesmo espaço, não fala mais a mesma língua e isso se deve à ruptura entre as profissões de outrora e de hoje. O trabalho se transformou.

O indivíduo como tal, surgiu em São Paulo e até recentemente vivia em função de vínculos: católicos, fêmeas ou machos, pobres ou ricos, pátria, partido, etc. Mas as coletividades explodiram, tudo se esfacelou. O indivíduo não reza, se divorcia cedo, não tem partido, nem governo, é egoísta e carece de ideologia pois as filiações que as criaram se desfizeram, como bem assinalava nosso poeta e compositor nacional o Cazuza.

A Polegarzinha está desprotegida. Resta então criar novos laços como o Facebook, já que as estruturas em que pretendemos ensinar-lhe algo “datam de uma época que eles não reconhecem mais: prédios, pátios de recreio, salas de aula, auditórios, campus”, etc. O ensino tinha a biblioteca como suporte para o corpo do docente, mas isso foi mudando do pergaminho para o livro, do livro para a internet.

Mas e aí? O que transmitir? O saber está em toda parte, disponível, distribuído a todos de forma não concentrada. Ficou mais fácil contactar colegas e obter proximidades imediatas. As funções cognitivas e a memória sofreram mutação, o corpo se metamorfoseia neste período  incomparável, despercebido até pelos filósofos. Então é preciso inventar novidades imaginárias. Tal como na lenda francesa do bispo Denis que, após decapitado, pegou de volta sua cabeça que rolava pelo chão, a Polegarzinha tem agora sua cabeça fora do corpo, na caixa-computador: "uma memória mil vezes mais poderosa , uma imaginação equipada com milhões de ícones e um raciocínio". 
Cabeça do bispo decapitado Denis rola pela escada.
Obra do pintor  León Bonnat.












Com o arado, civilizações antigas se inspiraram no sulco
que riscava o chão para desenvolver a escrita.


Outrora quem almejasse se sobressair tinha que ter a cabeça cheia de informações. Agora a Polegarzinha pode andar com a cabeça vazia, pois o computador armazena todos os saberes. A escrita, iniciada pela percepção dos antigos quando os agricultores deixavam o risco do sulco que marcava a terra, hoje é acessada pelas páginas das telas digitais.


Sala de aula de 1920.
Todos ficam imóveis, atentos e submissos
ao professor/ porta-voz / power point.
Sala de aula moderna, os computadores
substituem os livros. Os corpos
não mais tão imóveis.    

As novas tecnologias mantêm o formato página dos livros ao tempo em que desejam distanciar-se dele, criar novos espaços do saber. É no afastamento do antigo saber que o pensamento se liberta: consegue inventar no âmbito vazio. “A inteligência inventiva se mede pela distância com relação ao saber”.

O autor se refere ao surgimento de um tumulto de vozes e que nesse tumulto possa ser encontrado o novo saber. No entanto é preciso ouvir as demandas destas vozes de alunos, cujas ofertas nunca foram checadas no sentido das suas correspondências. Porque agora o saber acessível, que se carrega no bolso, pode estar demarcando o fim do especialista.
                               
Se antes ficavam submissos aos comandos magistrais dos professores, porta-vozes, comparáveis a um Power Point (poder num ponto fixo), era porque, para aprender, houvesse a necessidade de se ser aterrorizado. Assim, podemos concluir que jamais houve democracia no saber pois os corpos nem se mexiam. Agora, irrequietos, em algazarra, não mais dependentes dos atores protagonistas da sociedade do espetáculo, que exigiam atenção e silêncio, os Polegarzinhos livram-se das correntes e promovem um saber descentrado, de movimentação livre, em espaço homogêneo. Seus corpos circulam, gesticulam, conversam, tagarelam. Simultaneamente motoristas e passageiros, o teatro se enche de atores móveis, oradores ativos, pregadores, preenchedores do espaço político.









Como fundir, empilhar, unificar, fusionar saberes? Como transformar o espaço do campus? Resposta: ouvindo o barulho da demanda. Mas como? Desfazendo tudo o que era organizado, catalogado, enfileirado, em prateleiras e com seções organizadas, etc. O mandamento da Polegarzinha é ouvir a intuição “serendipitina” e promover o desordenamento de prateleiras que areje no labirinto do caos.     
                        
                    


(enquanto aguardam o término do resumo, fiquem com a canção interpretada por Ney Matogrosso, bem apropriada para as relações das Polegarzinhas - "Samba do Blackberry")


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